Blackstar: A estrela negra de David Bowie.


"Todo homem possui uma estrela negra sobre seu ombro. E quando o homem vê essa estrela negra, ele sabe que sua hora chegou." (Elvis Presley)

Por mais que David Bowie tenha sido surpreendente ao longo de toda sua carreira, ninguém esperava tamanha ousadia na sua última obra, seu 27º disco de estúdio: Blackstar.
O camaleão apresentou um álbum muito experimental, que acabou se tornando um réquiem, pois Bowie morreu dois dias após seu lançamento.

A primeira música, com mesmo nome do disco, foi lançada em forma de vídeo, sendo recebida com certa perplexidade pela crítica.
Blackstar contém várias mudanças em sua instrumentação e letras completamente abstrusas. No vídeo são mostradas diversas imagens relacionadas à morte e uma história aparentemente montada com fragmentos que não se ligam.

Entender Blackstar fora do contexto da morte de David Bowie é praticamente impossível. Antes disso todos achavam que ele estava saudável, já que seu câncer terminal fora mantido em segredo.
Então, só depois de alguns dias do lançamento as coisas passaram a fazer sentido. Aquele clipe nonsense e angustiante virou um choque de realidade. Confira o vídeo aqui, para sentir o drama e entender a análise!
“Aqui é o Major Tom, e as estrelas não são mais as mesmas”.

ESTRELA NEGRA
Na vila de Ormen, na vila de Ormen
Há uma vela solitária
No centro de tudo isso, no centro de tudo isso
Seus olhos

A música abre com um instrumental quase clássico, enquanto o vídeo foca em um astronauta morto.
Esse astronauta é Major Tom, um personagem criado por David Bowie no fim da década de 60.

Major Tom deu as caras pela primeira vez na canção Space Oddity. Nela, ele narra sua bem sucedida missão no espaço, mas também sobre seu não tão bem sucedido retorno. Tudo indica que Major Tom morreu sem conseguir voltar para a Terra.

O corpo de Tom é exibido no clipe de Blackstar, e Bowie diz que ele está na vila de Ormen. Uma vila norueguesa cujo nome, traduzido do nórdico, significa serpente.
Existem várias interpretações possíveis para a serpente. Cada uma depende de qual cultura você irá se basear.
Pode ser a interpretação cristã, hindu, chinesa, asteca... Todas são diferentes e igualmente populares.

Mas Bowie é sutil e genial. Ele indica a interpretação correta que devemos seguir, ao usar uma palavra nórdica para nomear a vila.

A lenda nórdica tem na figura da serpente um cidadão chamado Jormungand, filho do deus da trapaça.
Jormungand está associado ao apocalipse. Ao mesmo tempo, assume a forma de Ouroboros, representado por uma serpente que morde a própria cauda. Ouroboros é símbolo dos ciclos reencarnatórios da alma humana, da eternidade, continuidade, e da evolução.

A vela solitária citada na letra pode significar o infinito potencial: “Milhares de velas podem ser acesas de uma única vela, e a vida dessa vela não será reduzida”.
Além desse simbolismo, existe uma imensidão de possibilidades. Por exemplo, no cristianismo uma vela solitária pode ser acesa para alguém em estado terminal, de forma a ajudar a ascensão da alma ao céu.

Por fim, o centro de tudo não é uma referência literal de lugar. Mas sim o predicado da frase “seus olhos”, que vem depois. Os olhos são o centro de tudo, eles são o ponto de princípio do universo observável. Não há nada além do que podemos ver.

No dia da execução, no dia da execução
Apenas mulheres se ajoelham e sorriem
Ao centro de tudo isso, ao centro de tudo isso
Seus olhos, seus olhos

Major Tom é uma clara metáfora para representar o próprio David Bowie. Isso já foi feito outras vezes, como na música Ashes to Ashes (1980), em que Major Tom é descrito como um viciado, coincidindo com a época mais sombria de Bowie em relação ao abuso de drogas.
Ou seja, em Blackstar estamos vendo uma representação de Bowie morto.

O clipe avança e uma mulher surge na direção de Major Tom. Então David Bowie corta a cena e aparece no vídeo pela primeira vez, chamando aquele momento de “o dia da execução”.
Bowie usa uma venda em seus olhos. O uso de vendas tornou-se muito comum em execuções de prisioneiros. Por isso há uma forte sugestão de que Bowie está narrando a própria pena de morte.
Em resumo, já que seu câncer é incurável, ele se sente um prisioneiro sentenciado pela própria doença.

Uma ponte de jazz se inicia, quebrando o clima fúnebre. Bowie está na porta de um abrigo, e dentro há um negro, um albino, e uma mulher. Todos fazem uma dança macabra.

A presença do negro e do albino acontece em uma carta do baralho de Aleister Crowley, um ocultista que exerceu grande influência ao longo da carreira de Bowie. Nessa carta, chamada de Os Amantes (The Lovers), há a mensagem de escolha e dilema.

Enquanto isso, a mulher que se aproximou de Major Tom carrega sua caveira para uma espécie de ritual.
Nesse ritual, a caveira é colocada no centro e rodeada por várias mulheres, que também iniciam a dança macabra. Os restos mortais de Major Tom são largados no espaço, e passam a vagar à mercê da gravidade.

Vejo essa dança que todos fazem como uma alusão ao ritual da Dança da Morte (Danse Macabre), uma alegoria da Idade Média sobre a morte: “Não importa a situação de uma pessoa em vida, a morte une todos”.

O instrumental é interrompido por cânticos quase celestiais. Bowie aparece no céu, com um livro em suas mãos. Na capa, uma estrela negra. É como se após a morte ele tivesse se tornado um deus, e aquele livro, seu testamento, sua versão da bíblia.
Ao se proclamar como um deus, Bowie rejeita o cristianismo. Essa postura de Bowie já é conhecida de suas entrevistas anteriores, em que ele adota uma filosofia nietzschiana, aonde nós somos nossos próprios deuses.
Símbolo que representa Ouroboros.

Algo aconteceu no dia em que ele morreu
O espírito subiu um metro e se afastou
Alguém pegou seu lugar, e bravamente chorou
(Eu sou uma estrela negra, sou uma estrela negra)

Após a oficialização de sua morte, que é quando o espírito se afasta, Bowie diz que alguém pega o seu lugar. Esse alguém que pega seu lugar é Ouroboros aparecendo novamente, e toda sua representação dos ciclos.
Qualquer semelhança com a teoria do Eterno Retorno de Nietzsche não é mera coincidência.

Depois ele brada ser uma estrela negra. Apesar dos inúmeros significados secundários que podem ser atribuídos a esse símbolo (muitos já citados na resenha do álbum), o principal significado (mas não o único!!!) está relacionado ao ocultismo de Aleister Crowley.
Ela é o “sol da meia noite” de Crowley, e simboliza o espírito do homem capaz de brilhar através da escuridão de seu corpo.

Quantas vezes um anjo cai?
Quantas pessoas mentem ao invés de encarar?
Ele pisou no solo sagrado, chorou alto na multidão
(Eu sou uma estrela negra, eu sou uma estrela negra, não sou um gangster)

Quantas vezes um anjo pode cair? Podemos imaginar que Bowie está se referindo a Lúcifer. Olhem como a história se encaixa...

Lúcifer desejava ser Deus, e não um mero servente dele. Essa rebeldia resultou a sua expulsão do céu (e assim ele se tornou o anjo caído).
Agora, lembra-se de que Bowie também rejeita a ideia de servir a Deus, e se proclama como um? Pois é! Assim como Lúcifer, ambos compartilham o mesmo desejo.

Lúcifer também é conhecido como “a estrela da manhã”, por seu brilho ofuscante. Esse é um contraponto à estrela negra de Bowie.

Na sequência é mencionado o solo sagrado. Sabe que solo é esse? Bem, Bowie continua falando de Lúcifer, e nos lembra de que o capiroto deu uma passeada no Éden e até assumiu a forma de uma serpente para conversar com Eva e seduzi-la.

Na última frase ele volta a se proclamar como uma estrela negra e nega ser um gangster, um charlatão (além da brincadeira com a sonoridade das palavras, que só faz sentido em inglês).
Ilustração da queda de Lúcifer no livro O Paraíso Perdido.

Eu não posso responder o porquê (eu sou uma estrela negra)
Apenas vá comigo (eu não sou uma estrela de cinema)
Vou te levar pra casa (eu sou uma estrela negra)
Pegue seu passaporte e sapatos (eu não sou uma estrela pop)
E os seus sedativos, meu doce (eu sou uma estrela negra)
Você é fogo de palha (eu não sou uma estrela maravilha)
Eu sou o grande eu (eu sou uma estrela negra)

A descrição de si mesmo continua. Mas Bowie se define por meio de negações. Não importa saber o que ele é, e sim o que ele não é. O conceito de negação está presente na cor negra, que nada mais é do que a inexistência de cores. O negro existe porque não existe.

No final, quando ele se declara “o grande eu”, Nietzsche volta a aparecer. Trata-se da aplicação da teoria do Übermensch, em português seria o Além-Homem, descrito no livro Assim Falou Zaratustra.
Para Nietzsche, a meta do esforço humano não deveria ser a elevação de todos, mas o desenvolvimento de indivíduos favorecidos e mais fortes.

O Além-Homem é aquele que supera todo o ressentimento, o homem se torna artista, dono de si: “É preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante”.

Eu sou uma estrela negra, pra cima, com grana, estou no jogo
Eu vejo bem, tão amplamente, tão dolorosamente de coração aberto
Eu quero águias nos meus devaneios, diamantes nos meus olhos
(Eu sou uma estrela negra, sou uma estrela negra)

Estar pra cima, com grana, no jogo... Esses elementos andam lado a lado com o estrelato. Porém Bowie não é uma estrela do pop ou do cinema, como descrito na estrofe das negações. Então, se ele não é nada disso, qual é o tipo de estrelato a que David Bowie se refere?

A águia é um símbolo de liderança e visão, enquanto que os diamantes significam prosperidade. A primeira é associada aos devaneios, enquanto que o segundo é associado a algo mais real, os olhos.
Isso transmite a ideia de que Bowie sonha com liderança e visão, para ver prosperidade. São os pensamentos de um deus. Esse é seu estrelato.
Alguns já sabiam de toda a verdade.

Algo aconteceu no dia em que ele morreu
O espírito subiu um metro e se afastou
Alguém pegou seu lugar, e bravamente chorou
(Eu sou uma estrela negra, sou uma estrela negra)

Eu não posso responder o porquê (eu não sou um gangster)
Mas posso dizer como (eu não sou uma estrela de cinema)
Nascemos de ponta cabeça (eu sou a estrela das estrelas)
Nascemos do jeito errado (eu não sou uma estrela branca)
(Eu sou uma estrela negra, não sou um gangster
Eu sou uma estrela negra, eu sou uma estrela negra
Eu não sou uma estrela pornô, não sou uma estrela vagante
Eu sou uma estrela negra, eu sou uma estrela negra)

Essas duas estrofes são quase repetições de estrofes anteriores, mudando sutilmente alguns jogos de palavras, mas mantendo o mesmo conceito. É a simetria da vida e da morte.

Em paralelo, o clipe volta a assumir uma linha extremamente sombria, ainda mais soturna do que no início.
São mostrados espantalhos se contorcendo, enquanto mulheres voltam a fazer um ritual com a caveira de Major Tom.

O que isso significa?
Não tenho a mínima ideia. O que você acha?

Por fim, a primeira estrofe da música é repetida (olha a simetria de novo, Blackstar acaba do mesmo jeito que começa).
O clipe caminha para o encerramento. O ritual das mulheres termina com uma delas se oferecendo para ser o altar da caveira. O simbolismo por trás desse ato é uma referência direta aos rituais satânicos de Aleister Crowley, cujas mulheres eram usadas para esse fim.
No exato momento em que isso acontece, uma besta ataca os espantalhos.

Resumo da bagaça toda: Bowie anuncia sua morte. Se proclama um deus. Menciona Lúcifer. Por fim se despede em um ritual satânico.
Perturbador?
O ocultismo esteve ligado à sua carreira o tempo todo. O final não poderia ser diferente. Essa mística toda faz parte da aura que o inglês criou ao longo de sua carreira.

Que a vida se repita na morte. Adeus, camaleão. Sentiremos sua falta. Um brinde ao novo começo e te aguardamos no eterno retorno.
“Como pessoa, eu sou bastante simples”.

Quem usa o Google Plus?

Sobre o Unknown

Depois de anos de estudo e dedicação à engenharia, percebi que era tudo um grande pé no saco. Joguei as coisas pro ar e fui para a ilha de Balboa (pode procurar no Google, ela existe!). Agora fico deitado na rede e ouço rock o dia todo.

9 comentários :

  1. Sem dúvida minha canção favorita do Bowie de longe, entre os 27 discos. Respeito sua carreira como artista e músico, apesar de ter dificuldade de absorver sua voz em algumas músicas, entretanto, neste álbum ele deixou pérolas como Lazarus e Blackstar para estar eternamente em minha playlist. Sem dúvida é um prelúdio do que ele já sabia que ia acontecer (não tão abruptamente como foi, mas ainda sim sabia), um álbum muito bem executado, ainda mais nesta música, Blackstar, com uma sonoridade cheia de texturas sombrias, o vocal melancólico e a letra ainda mais. O videoclipe acompanha a genialidade do mestre, totalmente em sincronia com a letra e melodia. Agora é esperar o que o mestre preparou para os próximos anos. Pelo que li ele havia deixado um legado para pelo menos uns 5 anos de lançamentos post-mortem.
    Um abraço, Gusta

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    1. Eu sempre tenho medo desses materiais póstumos dos grandes artistas... Geralmente eles caem nas mãos de produtores mais interessados em ganhar grana e vender no iTunes, do que manter o padrão da obra!
      Abraço!

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  2. Essa frase do Elvis tá errada! Ele diz Flaming Star (Estrela de Fogo), é uma frase do filme de mesmo nome do Don Siegel.

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    1. Tirei a frase da música, e não do filme! Por isso a diferença...
      https://www.youtube.com/watch?v=h0Jkv1cs6PE

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  3. Ótima resenha! Mas mesmo admitindo o ocultismo na sua obra, ele sempre pareceu bastante cristão, em shows ao menos, lembra que ele puxa um "Pai Nosso" no tributo a Freddy Mercury de 92? No mais, arrepiante como um gênio deve ser.

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    1. Obrigado!

      Realmente, ótimo ponto esse... O Bowie era totalmente discreto fora dos palcos, e fica muito difícil saber o que se passava em sua cabeça.
      Nos palcos, ele se transformava, mas muitas vezes víamos um personagem.

      Eu acho que assim como na sua carreira, Bowie pessoa se transformou diversas vezes. E sua religiosidade seguiu por esse mesmo caminho. Ele teve seus momentos mais obscuros e seus momentos mais cristãos.

      Obs.: Dei uma fuçada no seu blog, excelente o texto sobre o Muse!

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  4. Na parte "Alguém pegou seu lugar, e bravamente chorou", só consigo me lembrar da Lady Gaga, ela postava vídeos no snapchat chorando enquanto ouvia músicas dele no dia do grammy e naquela mesma noite se caracterizou de Bowie

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  5. Parabéns pela resenha, indiscutível o talento de Bowie, fechar a carreira sem nenhuma ideia de revival ou coletânea, ao contrário, expandindo os horizontes, pitadas de jazz com batidas eletrônicas, o velho e o novo, a cara do mestre Camaleão. O clip é uma obra de arte a parte, fiquei com sensação que menina que descobre o astronauta faz alguma alusão a Frida Kahlo, artista que também passou por terríveis momentos de dor que talvez Bowie naquele momento estivesse se identificando, repare nas sobrancelhas dela.

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